sábado, 9 de janeiro de 2016

DEGUSTANDO A VIDA

Marx afirma que a luta de classes é o que anima a humanidade. Freud acha que é o sexo. Para mim, perdoem-me a pretensão, o que nos impulsiona é o sonho. Não me refiro àquela fantasia que acontece durante o sono que a psicanálise define como cargas emocionais armazenadas no inconsciente. Falo do sonho como desejo, ânsia, aspiração, objetivo. Ele não precisa ser imenso, mas intenso como as enxurradas que surgem abruptas em céus cor de chumbo.  Sonhos são vontades que nos incitam, que nos fazem sair da cama pela manhã, que nos mostram o rumo a seguir. Na infância, eles se misturam à imaginação açucarada e prazerosa envoltos aos hormônios que estão sendo produzidos. De fácil acesso, surgem e somem sem deixar rastro. Quando não realizados, são substituídos por outros, sem problemas.  Um cãozinho de estimação, uma bicicleta nova, o celular da moda e, com o tempo, dependendo das posses, vão se sofisticando cada vez mais. Fase folgada essa, pois nada depende da gente. Temos que simplesmente desejar. Se ganharmos, estaremos no lucro E assim vamos borboleteando até a barulhenta juventude que surge derramando planos e experiências sôfregas.  Época de despertar paixões, convulsionar, mas também de traçar caminhos, investir no futuro. Nessa ocasião, juramos de punhos cerrados que seremos felizes para sempre com o parceiro que escolheremos, que nossos filhos serão lindos e bem educados, e a fama esmagadora virá ao nosso encontro. Lá na frente, oscilando entre severa e exuberante, surge a maturidade. Às vezes sorridente, às vezes desapontada. Deveria ser o tempo de fazer boas colheitas, de realização profissional. Mas ainda temos prazo para refazer aquilo que não saiu a contento, lavar as mágoas que teimam em permanecer em nosso coração, seguir lutando para sermos úteis e justos, e quem sabe, admirar nossas conquistas. E depois? O que vai nos restar? Podemos continuar sonhando na velhice? Um dia desses, questionei meu amigo e colega Jâneo sobre a necessidade de sonhar. Jâneo é um jovem professor de filosofia, estudante de artes cênicas e mestrando em educação. É inteligente, criativo, dinâmico e dono de uma criticidade oceânica. Perguntei-lhe o que nos move na velhice. As lembranças, prontamente ele falou. Diante daquela resposta assustadora, me senti paralisada. Revisitar o passado nos dá energia suficiente para viver o presente? Seria assim o último ciclo de nossas vidas? Viver de recordações? É o mesmo que esperar por nada e admitir que o tempo passou de vez. E essa coisa cheia de vida e alegria que pulsa dentro da gente sai de cena? Seria desolador. Sim, isso é morrer. Quero crer que a velhice é a fase em que armazenamos conhecimentos, experiências, amores bem e mal resolvidos, amizades verdadeiras e acima de tudo vontades. Vontade de fazer exatamente aquilo que por várias razões não pôde ser feito antes. Na metamorfose dos anos, temos que encontrar razões para continuar vivendo. Se o comportamento humano é modelado pela cultura, e a expectativa de vida do homem aumentou, quero ser desafiada sempre, mesmo na senilidade.  Desculpe, meu amigo Jâneo. Preciso violar a tua tese. É uma questão de vida ou morte.

Ângela Maria Lorenzoni Sauthier 
07/01/2016