domingo, 23 de março de 2014

O PIANO DA MINHA VIZINHA

Minha vizinha tem um piano. Fiquei extasiada ao perceber aquele móvel suntuoso na sala de estar. O requinte daquele ambiente estava diretamente ligado ao piano. Passei o observá-lo com delicadeza e admiração. Muitos até diriam que não se trata de um instrumento útil como o google, a máquina de cortar grama ou o controle remoto da televisão. Pode até ser verdade, mas nem um deles tem a nobreza de um piano. E acreditem, não é um piano qualquer. É um piano de cauda. Na vida tudo é casa, comida e sexo, disse Freud. Discordo, na vida tem piano também. Lembro-me dos saraus que aconteciam no século XVIII, cujas imagens víamos nos livros de história do Brasil. Uma dama de cabelos encaracolados e usando um longo vestido tocava piano para seus convidados. Era uma cena bem romântica e muito burguesa. Eu, embora proletária, tinha a ousadia de sonhar com um piano, embora soubesse que somente as meninas ricas e de famílias ilustres podiam ter um. Piano era nobreza. Piano era erudição. Tive então que me identificar completamente com minha condição social e aceitar a generosidade de meu pai ao comprar um Acordeon Todeschini de 80 baixos. Ele gostava muito de gaita e quis que eu estudasse música em um conservatório da cidade. Não morria de amores por gaita, mas amava meu pai e por ele fazia qualquer coisa. À tardinha quando ele chegava do trabalho, tomava seu banho enquanto minha mãe preparava o chimarrão. Coisas do tempo em que as mulheres não terceirizavam a função de cuidar dos filhos e ficavam a disposição de seus maridos. Tempos bons? Não cabe aqui discutir isso, é tema para outra reflexão. Voltando ao rumo da prosa, depois do banho, meu pai pedia para que eu tocasse gaita. Àquela hora do dia era especial para ele. Ele ouvia de olhos fechados e em sua fisionomia cristalizava-se o fascínio que nutria pela música. Quando recebíamos visitas, eu sabia de antemão que teria que tocar. A cumplicidade dos nossos olhares dispensava pedidos. Meu pai sorria orgulhoso dos dons artísticos da filha. Estudei música por mais algum tempo. Outras atividades ocuparam o lugar da gaita e acabei abandonando a carreira musical. Mas o piano continua me encantando. Eu ainda imagino um na minha sala de estar. Um dia desses fui à casa de minha norinha Andressa. Ao chegar próximo, ouvi um som tão emocionante que parei por um tempo e fiquei escutando num estado de pura contemplação. Ouvi por alguns minutos aquela música e fui andando em sua direção como um cão farejador à procura de sua caça. Parei na porta e vi uma cena que me emocionou de verdade. Andressa tocava piano. E tão bem, e tão bonito, e tão sublime que meu coração bateu mais forte. Aquela cena reacendeu em mim a paixão pelo piano. Março/2014