sábado, 22 de outubro de 2016

MEMÓRIAS

Olho a casa que me viu crescer e volto no tempo de uma forma sôfrega como se vivesse os últimos momentos na terra. Apesar de estar travestida de sobrado mal acabado, a casa, com suas paredes alaranjadas e janelas brancas, surge voluptuosa como fêmea no cio. Mesmo sem querer eu vou lembrar de seus aposentos estreitos e simplórios que, vez por outra, me encaram e me reconhecem. Sou uma ilustre visitante que motivada pela saudade ou na tentativa de buscar o que ficou perdido no passado, retorna cheia de esperança. Despojada do presente, quero sentir a alquimia que ficou impregnada nos corredores confusos e cobertos de lembranças boas. A parreira que foi plantada pelo nono Bepe, em cuja sombra meu pai descansava sentado em uma espreguiçadeira de lona listrada sempre que retornava do trabalho. O quintal de chão batido com algumas árvores de copas altas que, nos outonos acabrunhados, espalhavam folhas amarelas pelo chão. Durante as ventanias de setembro, seus galhos roçavam as telhas da casa e rugiam como leões furiosos. Mais uma vez abandono-me aos pensamentos e vejo o pé de laranja natal, miúdo, sorridente e de cheiros vários. Retomo os momentos em que, nas tardes vadias, apanhava seus frutos com cuidados de amante extremosa e saboreava o caldo adocicado. Na beirada da cerca, um imponente pessegueiro com frutos comumente bichados que eventualmente fazia meu deleite ao mostrar-me um pêssego maduro. Volto para a porta da cozinha minúscula e ouço o gemido de um martelo batendo nas madeiras verdes. Mais uma vez meu avô entra em cena, com sua sabedoria de imigrante italiano e pobre, na construção do galpão que iria abrigar dezenas de galinhas poedeiras. Surge então a imagem de minhas irmãs e eu, no final do dia, recolhendo ovos com cestas de vime. Minha memória teima em trazer de volta o dia em que minha mãe vendeu duas de suas poedeiras para que nós pudéssemos ir na matinê de domingo. As mães são generosas no seu amor. Volto para o cômodo da frente e dali visualizo a cerca coberta de rosinhas de maio que floresciam em novembro. Plantadas a esmo e sem cuidado algum, pariam cachopas cor-de-rosa que se amontoavam singelas e perfumadas provocando um espetáculo quase divino. Difícil era apanhá-las sem espetar os dedos nos seus espinhos endurecidos e afiados. Girando ainda a manivela da memória vejo Dona Geni, não a que foi apedrejada, mas a que plantava sempre- vivas em um jardim atulhado de borboletas. A mulher das flores, ela era chamada pela vizinhança.  Como esse tempo foi intenso. As palavras tornam-se xucras para traduzi-lo.  As emoções que ali nasceram me espreitam e me seduzem todos os dias. Impossível esquecê-las. Saí daquele lugar para alçar voos aventureiros, mas lá minhas plumas deixei. Com o pensamento meio anarquizado saio daquele estado de contemplação com o som de uma voz feminina perguntando se eu procurava por alguém.

 Ângela Sauthier-  Outubro/2016





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