terça-feira, 5 de março de 2019

ANTES DE PARTIR (Parte 1)

     Aquele ano não começara bem para ele. As espaçadas indisposições que surgiram antes do Natal tornaram-se frequentes dores abdominais em Março. Consultas médicas, exames de sangue e de imagens, corridas a especialistas, choro contido e o diagnóstico mortal.
     Agora, da janela do quarto do hospital, observo o galho da árvore balançando ao vento. O silêncio da noite me reporta ao longo ano de quimioterapias. Apesar do prognóstico, a morte não estava em seus planos. Tinha convicção de que ainda teria uma vida longa. Por generosidade me esforcei para acreditar nisso também. Construí um mundo de faz de contas para que o desalento  não o atingisse.
É aterrorizante saber que a morte ronda nossa casa. Isso fez com que eu me embrulhasse em tantas coisas e depois não soubesse sair dos embrulhos. Estranho estar ali naquela hora ouvindo o ruído do vento e temendo que o pior acontecesse. Estranho não termos nenhum  controle sobre a vida.
     Nas brincadeiras das horas bobas, ele dizia que quando "subisse" queria alegrias em sua volta. Olho agora seu rosto sonolento  revestido de dor e as batidas do meu coração ficam  mais fortes Vejo de relance a cara desgrenhada do vento e as batidas do meu peito se aceleram. Finalmente amanhece. Cheiro de café passado. O movimento das enfermeiras no corredor do hospital recomeça. Mais uma noite de vida.

FEVEREIRO/2019
.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

VÁRIOS PESOS E MEDIDAS

Caminhava pela rua do Acampamento hoje à tarde, quando percebi um movimento esquisito na porta das lojas Grazziotin. Três policiais devidamente armados cercavam um rapaz "negro" que tinha nas mãos uma  sacola insignificante. Um dos policiais comunicava-se pelo rádio, não sei exatamente em que tom. Os outros dois falavam, gesticulavam e movimentavam-se pungentemente enquanto o rapaz esperava com uma aragem de tristeza resignada no olhar. Possivelmente ele teria cometido um pequeno furto na loja. Uma camiseta, uma bermuda ou uma cueca. Vamos lá saber de que ele mais necessitava! Como a curiosidade mobiliza multidões, aos poucos  pessoas amontoavam-se para ver o rosto do “gatuno” e presenciar o desfecho do caso. Eu, do outro lado da rua, pensei no Brasil consumido pela chama da corrupção, da ladroeira e da patifaria, e senti náuseas. Salve Cunha, Palloci, Delcídio do Amaral, Sérgio Cabral... Pobre rapaz!

Ângela Sauthier/ Dezembro-2017

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE

A secretária que me atendeu tinha um sorriso bonito e delicadeza no trato. Pediu-me a carteira do convênio, prova viva de que no fim do mês seu salário estaria garantido. Gentilmente me conduziu à sala ao lado. Alguns minutos depois, outra funcionária me acompanhou até o segundo piso para que lá eu aguardasse ser chamada pelo nome.  Feito isso, uma terceira atendente, dessa vez com cara de poucos amigos, me chamou pelo nome e me levou até um aposento minúscula. Me deu algumas instruções: tirar a blusa, vestir o jaleco, deitar na maca e aguardar o médico.  Assim se comporta a maioria dos funcionários de clínicas médicas. Com pragmatismo, eficiência e indiferença. É o frio protocolo.  Me senti tensa e manuseada como troco de ônibus.  Em minha solene solidão, passei a observar o gélido ambiente que me acolhia. Dois monitores piscavam e indicavam alguns dados estranhos. Um aparelho gigantesco, cheio de botões e teclas emitia um som misterioso, de pouco intensidade, mas contínuo. Com a penumbra do ambiente, aquelas luzes mortiças passaram a me assombrar. Algumas seringas sobre a mesinha compunham a cena dignamente. E eu ali, olhando para o nada, cheia de medos, sentindo-me invisível. O que pode ser mais assustador do que o desconhecido? Dentro de minutos estaria expondo minhas mazelas físicas para um homem estranho vestido de branco. Quis bater em retirada. Me contive. Tranquei o choro. Naquele emaranhado de emoções, comecei a costurar lembranças dolorosas sobre a doença que vitimou minha mãe. Tudo ali fazia eu voltar no tempo.  Pensei nas longos dias que ela e eu perambulamos juntas na solidão desses lugares com a esperança de que os homens de branco encontrassem fiapos de esperança para aquele corpo sofrido. - Um minuto de silêncio para aqueles que lutam por restos de vida -. Já odiei esses profetas anônimos que antecipam a ideia de morte por conta de seus saberes. Então comecei a me embrulhar nesses pensamentos e não sabia como sair desses embrulhos. As batidas no meu peito se aceleraram. Por maior que seja a pena, não haverá castigo mais duro do que ver a vida de quem amamos esvair-se. E os que partem esquecem o caminha de volta. Embora a vida nos ensine a administrar nossa dor, a consciência nos torna covardes. E quem fica se mantem na eterna luta de prolongar sua existência peregrinando por consultórios na tentativa de antecipar-se às doenças. E lá estava eu farejando as minhas. Despertei daquela letargia que fazia fronteira entre a realidade e a imaginação com a voz do radiologista dizendo que o exame havia terminado e que eu poderia me vestir. Olhei para ele com respeito porque conhecimento exige respeito. É grave doutor?

Ângela Maria Lorenzoni Sauthier
Janeiro/2017


segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

DIALOGANDO COM O TERAPEUTA




Lhe digo, não sou eu que atraio minhas tristezas. Fujo delas como o diabo da cruz. No entanto o desalento me absorveu. Sinto como se estivesse carregando o fardo do mundo. Sempre que batia asas, olhava para trás na espera de que alguém viesse a meu encalço. Agora me perco na escuridão dos dias sem sentir medo. Meu coração não oscila mais segundo as estações do ano. Está ficando cheio de nada. Bate devagar. Logo eu que sempre apostei nas emoções. Aquelas extraordinárias, porque as moderadas são cheias de tédio. Logo eu que sempre tive um formidável apetite de viver.  Não me reconheço mais. Dou um salto mortal na memória e percebo que na minha meninice não existiam dias iguais. Luminosos, nublados ou chuvosos vinham sempre abarrotados de utopias. Na adolescência ainda se espera muito da vida. Lampejos de sonhos nos perseguem. Eles moram dentro da gente. O senhor que conhece os labirintos do coração sabe que é preciso ter cuidado com o que se busca, pois nada é para sempre. Hoje o mundo parece estar desvestido de alegrias. Essa vida louca que me faz tombar aos pedaços quando percebo que fui expulsa da minha própria condição para dar lugar ao momento presente que me castiga com rigidez. Olho para os lados e só vejo gente triste. Deve ser por culpa do tempo, esse intruso que escorre como óleo espesso e faz crescer a nossa rotina.
O doutor sabe que a vida é uma sucessão de perdas e eu não quero viver recolhida no vazio da minha existência, no silêncio protocolar dos dias opacos, nem faminta de afetos. Preciso acreditar que não perdi a razão para seguir com a minha história. O senhor tem sido meu melhor conselheiro nas horas em que minha alma sapateia desolada. Por isso faça eu aceitar a condição de não ter nascido para moldar almas.
  Olho para a janela e espero que, como uma doença, a noite passe logo. Vou sair do escuro sem fazer barulho, na ponta dos pés. Vou encontrar o dia. Vou encontrar o sol. Eu preciso de sol para viver. O que eu queria mesmo, doutor, era uma transfusão de vida.

Ângela M. L. Sauthier
Janeiro/2017



quinta-feira, 27 de outubro de 2016

MEU PRÍNCIPE ESTÁ DE ANIVERSÁRIO


Conheço os limites das palavras, por isso sempre foi difícil para mim traduzir as emoções.  Não sei medir sentimentos. Menos ainda avaliar a intensidade dos afetos de uma mãe por um filho. Somente quem os tem sabe que esse amor desvairado constrói ligações definitivas. Hoje meu filho Camilo está de aniversário, por isso é um dia importante. O dia é especial porque Camilo é um ser humano extraordinário. Ele nasceu de parto normal às 20 horas e 15 minutos com um quilo e oitocentos gramas. Tinha apenas 45 centímetros. Pouco maior que um gatinho, Camilo chegou ao mundo cauteloso e frágil sem fazer estardalhaço. Somente o pediatra percebeu que aquele ser minúsculo e apressado faria uma revolução em nossas vidas. Pessoas intensas chegam rápido.
A princípio pensei que a vida tivesse me dado uma rasteira. Mas foi por um curto período. Logo rasguei o manual de instruções e partimos do zero. Vivendo em uma sociedade que trata o especial como doente, lutei para abrigá-lo de ventos ásperos. Enfrentei bichos e homens, mas nunca deixei que as aves de mau agouro pousassem em seu ombro.  Fomos nos conhecendo um pouco a cada dia. Ensinei seus primeiros passos, a balbuciar as primeiras sílabas, a sentir o doce e o amargo, a distinguir a luz da penumbra. E ele, com abertura enorme para o afeto e com escassas palavras me ensinou que a humildade é uma bênção, que a tolerância nos faz evoluir, que o amor ilumina a alma e que a felicidade está nas coisas pequenas e simples. Camilo vai à luta sem medo. Conquista seus espaços com humildade. Enfrenta os desafios sem arrogância.
Seu carisma conquista a todos sem restrição, e eu sinto um grande orgulho dele. Agradeço a Deus todos os dias por tê-lo a meu lado. Parabéns, meu príncipe!


sábado, 22 de outubro de 2016

MEMÓRIAS

Olho a casa que me viu crescer e volto no tempo de uma forma sôfrega como se vivesse os últimos momentos na terra. Apesar de estar travestida de sobrado mal acabado, a casa, com suas paredes alaranjadas e janelas brancas, surge voluptuosa como fêmea no cio. Mesmo sem querer eu vou lembrar de seus aposentos estreitos e simplórios que, vez por outra, me encaram e me reconhecem. Sou uma ilustre visitante que motivada pela saudade ou na tentativa de buscar o que ficou perdido no passado, retorna cheia de esperança. Despojada do presente, quero sentir a alquimia que ficou impregnada nos corredores confusos e cobertos de lembranças boas. A parreira que foi plantada pelo nono Bepe, em cuja sombra meu pai descansava sentado em uma espreguiçadeira de lona listrada sempre que retornava do trabalho. O quintal de chão batido com algumas árvores de copas altas que, nos outonos acabrunhados, espalhavam folhas amarelas pelo chão. Durante as ventanias de setembro, seus galhos roçavam as telhas da casa e rugiam como leões furiosos. Mais uma vez abandono-me aos pensamentos e vejo o pé de laranja natal, miúdo, sorridente e de cheiros vários. Retomo os momentos em que, nas tardes vadias, apanhava seus frutos com cuidados de amante extremosa e saboreava o caldo adocicado. Na beirada da cerca, um imponente pessegueiro com frutos comumente bichados que eventualmente fazia meu deleite ao mostrar-me um pêssego maduro. Volto para a porta da cozinha minúscula e ouço o gemido de um martelo batendo nas madeiras verdes. Mais uma vez meu avô entra em cena, com sua sabedoria de imigrante italiano e pobre, na construção do galpão que iria abrigar dezenas de galinhas poedeiras. Surge então a imagem de minhas irmãs e eu, no final do dia, recolhendo ovos com cestas de vime. Minha memória teima em trazer de volta o dia em que minha mãe vendeu duas de suas poedeiras para que nós pudéssemos ir na matinê de domingo. As mães são generosas no seu amor. Volto para o cômodo da frente e dali visualizo a cerca coberta de rosinhas de maio que floresciam em novembro. Plantadas a esmo e sem cuidado algum, pariam cachopas cor-de-rosa que se amontoavam singelas e perfumadas provocando um espetáculo quase divino. Difícil era apanhá-las sem espetar os dedos nos seus espinhos endurecidos e afiados. Girando ainda a manivela da memória vejo Dona Geni, não a que foi apedrejada, mas a que plantava sempre- vivas em um jardim atulhado de borboletas. A mulher das flores, ela era chamada pela vizinhança.  Como esse tempo foi intenso. As palavras tornam-se xucras para traduzi-lo.  As emoções que ali nasceram me espreitam e me seduzem todos os dias. Impossível esquecê-las. Saí daquele lugar para alçar voos aventureiros, mas lá minhas plumas deixei. Com o pensamento meio anarquizado saio daquele estado de contemplação com o som de uma voz feminina perguntando se eu procurava por alguém.

 Ângela Sauthier-  Outubro/2016





domingo, 3 de julho de 2016

O FUTEBOL NOSSO DE CADA DIA


O domingo tinha todos os requisitos para ser perfeito. O dia de domingo é gostoso por natureza, e este, em especial, apareceu escandalosamente ensolarado.  O frio de renguear cusco deu lugar a um veranico que antes era chamado de verão de maio. Clima de férias no Nordeste.    Um pouco antes do almoço, teríamos o Grenal. Quem é gaúcho sabe que o Rio Grande é dividido entre gremistas e colorados. Tem os que não gostam de jogo, mas torcer por um time de fora, somente os gaúchos desgarrados, os que não têm calor na alma. Em dia de Grenal, o estado inteirinho fica inquieto, tenso e esperançoso. Uma disputa gigantesca aflora nos nossos corações. A vitória num jogo desses tem gosto de sorvete de morando, de pudim de chocolate, de doce de leite.
Hoje, o meu Internacional fez eu acordar antes do almoço (nos domingos, acorda-se depois do almoço), eufórica, vibrante e faceira. O Beira-Rio estava esplêndido. Uma massa humana cor de sangue vibrava nas arquibancadas. Gente de todas as cores, todas as idades, todos os sexos torcia, gritava, agitava bandeiras.
Meu time perdeu. Contingências do futebol. Eu chorei. A maior torcida gaúcha chorou. Não é possível explicar o que sentimos. Têm fatos que a palavra não alcança, mas dói feito uma brasa. As grandes dores são mudas. Apesar dessa derrota, continuo acreditando com cada molécula do meu corpo que ainda vamos nos empanturrar de vitórias.
De repente, o domingo ficou cinzento. Mais parecia uma segunda- feira chuvosa.

Ângela Maria Lorenzoni Sauthier- 03/07/2016