domingo, 3 de novembro de 2013

TIRANIA MASCULINA

É muito difícil alguém ter chegado aos quarenta ou cinquenta anos sem nunca ter ouvido falar nas Mil e Uma Noites. É uma das mais famosas histórias da literatura árabe escrita entre os séculos XIII e XVI e se mantém até hoje como referência literária. O enredo é mais ou menos assim: Xariar, rei da Pérsia, tinha o estranho hábito de desposar uma nova mulher a cada dia e na manhã seguinte cortava seu pescoço. Vejam que o descartável não é algo moderno. Já existia naquela época. Mas há uma explicação para tanto desvario. O rei tinha sido traído pela rainha. Enquanto ele caçava veados pelo reino, a rainha fazia orgias com os escravos negros. Pelo visto, a fêmeas nobres tinham taras pelos escravos negros e estes não brincavam em serviço. Quando Xariar soube do fato, imediatamente puxou seu punhal e decapitou a esposa adúltera. Inconformado e traumatizado com a infidelidade da rainha, o rei passou a matar todas as suas esposas para se livrar de uma nova traição. Até que surgiu a astuta Sherazade para por fim à saga das mulheres daquele reino. Com suas histórias intermináveis ela tenta curar as loucuras de Xariar e salvar a própria pele. E consegue, pois durante mil e umas noites contando histórias, Sherazade teve tempo suficiente para seduzir o rei que acabou apaixonando-se por ela. E como em todas as histórias infantis, viveram felizes para sempre. Quanta selvageria acontecia no tempo dos reis e das rainhas. Tudo em nome da moral e dos bons costumes- dos homens. E o imaginário popular sempre aceitou essas tragédias sem questionar, uma vez que se tratava de histórias que aconteceram há muito tempo e muito longe de nós. Cinco séculos depois, quando os computadores estão disponíveis tanto quanto o ferro elétrico, quando a mulher passa a representar 42% do mercado de trabalho e pode gerar um filho sem a presença física do homem, quando a oralidade e as gírias chegam aos nossos dicionários, quando a linha que divide o masculino e o feminino se torna quase invisível, quando vemos corpos tatuados com dragões e flores, os homens continuam matando suas mulheres. Sem traições nem orgias. É inacreditável, mas parece que a sociedade está mais uma vez assimilando essas tragédias. O mundo sofisticou-se, mas os jornais noticiam diariamente mais uma vítima. É quase rotina. E todas essas mulheres têm algo em comum: resolveram mudar o rumo das suas vidas e, no limite da sua individualidade, disseram não ao homem. Viraram-lhe as costas. Apenas quiseram viver outra vida e não a que estavam vivendo. Namorados, maridos ou companheiros matam inconformados com o fim da relação. Matam porque perderam o controle sobre suas fêmeas. Matam porque não conseguem mais submetê-las as suas vontades. Matam porque o machismo perverso embaralha a lucidez dos homens e faz com que eles acreditem que a violência é o único modo de evitar a ameaça da perda. E quando não conseguem a morte física, procuram sepultar-lhe a alma. Mas o rei não ficou impune. Enquanto ele degolava suas esposas, a história, num ato de tentar fazer alguma forma de justiça, imputou-lhe a pena de se apaixonar por Sherazade. Seu castigo foi a submissão à rainha. Hoje os nossos reis, príncipes e déspotas matam suas mulheres e a sociedade tenta jogar na sombra tais tragédias. É hora de começarmos a nos horrorizar com as atrocidades feitas contra as mulheres e mostrar nosso repúdio a essa cultura que está se formando. Caso contrário, estaremos permitindo que a sociedade continue reproduzindo homens inseguros e perdidos, além de sermos coniventes travestidos de ignorantes. O inferno está cheio de pessoas neutras. Novembro/2013