terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

SOBRE MARIA BELTRAME

Maria Beltrame, tia Maria, madrinha ou simplesmente Maria. As palavras se tornam nuas e destemperadas para descrever essa mulher. Viu-se de repente responsável por uma família. O destino traçou a rota sem pedir licença, sem lhe perguntar se tinha medo ou não. Nessa nova configuração familiar, os papéis foram se distribuindo aos poucos, mas sem dúvida, Maria foi a protagonista. Foi irreverentemente atrevida ao arregaçar as mangas e encarar o mundo. Errando, acertando, sempre com bravura. A vida não lhe ofereceu opção. Para uma mulher sozinha na década de 60, em que o mito construído de que o homem é o provedor, deve ter sido uma grande batalha. Maria foi corajosa. Ousou subverter as regras tácitas. Encarou uma sociedade machista, na qual ser omissa, reprimida, isenta de opinião e sem pulso era ser uma mulher normal. Foi feminista sem querer, sem tumulto, sem discursos, sem passeatas. Teve que reinventar-se dia após dia. Quando as portas se fechavam, ela entrava pelas frestas. Aboliu fronteiras, criou pontes, derrubou muros reais e imaginários. A fragilidade era um luxo, não teve esse direito. Nem tempo para vacilar, temer ou ficar indecisa. Foi guerreira, altiva, eloquente, decidida. A sensibilidade mais do que o conhecimento foi lhe abrindo caminhos. Proveu sua família da melhor forma que pode. Maria foi muitas. Filha, mãe, irmã, madrinha, administradora das finanças e dos sentimentos dos seus. Foi nossa madrinha. Todos os seus sobrinhos a chamavam de madrinha. Ir até sua loja na Floriano Peixoto para pedir-lhe um conselho, uma opinião ou contar-lhe uma novidade fazia parte da nossa rotina. A loja da Madrinha serviu de palco para muitos encontros e reuniões familiares. Nos momentos de dúvida consultávamos Maria Beltrame. Sua opinião tinha peso nas nossas decisões. Ironicamente, seus sobrinhos foram se formando doutores e continuaram confiantes no seu bom senso. Maria sabia como ninguém, ouvir. Sabia como poucos, aconselhar. Com uma fé inabalável em Deus e no Catolicismo não abria espaço para questionamentos ou dúvidas. Nunca aceitou eu ter casado apenas no civil e embora não tenha me dito textualmente, considerou meu afastamento dos rituais de celebração um pecado mortal. Discutir religião com Maria era perda de tempo. Foi sempre muito intensa, e sua sinceridade, por vezes arranhava à grosseria. Dedicou-se às atividades da igreja até o fim. Numa época em que dirigir carros era função dos homens, Madrinha teve seu primeiro Fusca. Era Bege. Aos domingos, íamos de fusca para sua chácara no Lerme, mas nunca sem assistir à missa das 6 horas na Catedral, mesmo depois de um baile de carnaval. Era condição imposta por Maria: sem missa não tem passeio no Lerme. Ela tinha amor pelo seu trabalho e orgulhava-se dos frutos que ele rendeu. Sabia que a sua independência a tornava disponível para viver a vida da forma que quisesse sem precisar negociar sua felicidade com ninguém. Minha mente é povoada de lembranças com Madrinha. Algumas, meus primos compartilham comigo, outras são só deles; mas essa figura Gigante vai ficar eternizada na vida de todos nós. Maria teve uma vida longa. Mais longa do que a de sete de seus oito irmãos: Tia Carlinda, Tio Manoel, Tia Assunta (minha mãe), Tia Judite, Tio Turíbio, Tio Toni, Tia Júlia. Hoje Maria juntou-se a eles na morte. E diante da morte, as palavras calam-se, tornam-se inúteis. 13/02/2015 Ângela Maria Lorenzoni Sauthier